(Livre
paródia de Manuel Bandeira)
Estou farto do lirismo sem noção da década de
2010
Do lirismo dos moços de barba por fazer
Das moças com roupas engraçadas
Dos corpos cobertos e das palavras bonitinhas
Da poesia das melhores bandas das cidades, das
microdivas com nomes de pássaro
Dos mestiços, suicidas, pesticidas, sociopatas
Estou farto do lirismo das cantoras que existem
há quase trinta anos
Dos compositores de quando eu era criança
Que cantam as dores dos sofridos da Ditadura
sem senti-las
Estou farto do lirismo que não quer ser burguês
Mas suas palavras envolvem-se num torvelinho de
não dizeres burgueses
Abaixo os cantores que cantam um amor
moderninho mas trovadoresco tanto quanto
Aquele de uma cantiga medieval
Fora com os cantores que cantam o mundo e suas
desigualdades
Fora do mundo e de suas desigualdades
Que se vá o cantor-burguês
Sua lírica pseudo-reacionária comunicada
diariamente em seu smartphone
Que sumam suas afrodescendentes e brancas de olhares
luzidios
E de agudos suaves a cantar os questionamentos
De almas presas em perfis de redes sociais
Estou farto do lirismo
Que quer ressuscitar o amor que morreu
A fé que morreu
O homem que morreu
A vítima social que morreu, a despeito da
música que fizeram para ela
(Diga-se de passagem que a vítima jamais fica
sabendo que aquela música é para ela
Por causa dela, não ganha nada com isso, quem
ganha é o lírico burguês,
Esse que eu quero que se cale de uma vez por
todas)
Estou farto do lirismo do que é falso e
descabido, do lirismo do mundo hodierno
De resto não é lirismo
É mimimi de quem descobriu que falar bobagem
também dá dinheiro e fama
É quadro de referência de futilidade de quem
acha que sente as coisas
Eu quero o lirismo bruto do desespero
existencial da modernidade
Dos surtos psicóticos que redundam em
internação
Das mães desfilhadas em desastres urbanos
O lirismo pungente dos amores que enlouquecem
até os mais centrados.