segunda-feira, 15 de setembro de 2014

POÉTICA

(Livre paródia de Manuel Bandeira)

Estou farto do lirismo sem noção da década de 2010
Do lirismo dos moços de barba por fazer
Das moças com roupas engraçadas
Dos corpos cobertos e das palavras bonitinhas
Da poesia das melhores bandas das cidades, das microdivas com nomes de pássaro
Dos mestiços, suicidas, pesticidas, sociopatas
Estou farto do lirismo das cantoras que existem há quase trinta anos
Dos compositores de quando eu era criança
Que cantam as dores dos sofridos da Ditadura sem senti-las
Estou farto do lirismo que não quer ser burguês
Mas suas palavras envolvem-se num torvelinho de não dizeres burgueses
Abaixo os cantores que cantam um amor moderninho mas trovadoresco tanto quanto
Aquele de uma cantiga medieval
Fora com os cantores que cantam o mundo e suas desigualdades
Fora do mundo e de suas desigualdades
Que se vá o cantor-burguês
Sua lírica pseudo-reacionária comunicada diariamente em seu smartphone
Que sumam suas afrodescendentes e brancas de olhares luzidios
E de agudos suaves a cantar os questionamentos
De almas presas em perfis de redes sociais
Estou farto do lirismo
Que quer ressuscitar o amor que morreu
A fé que morreu
O homem que morreu
A vítima social que morreu, a despeito da música que fizeram para ela
(Diga-se de passagem que a vítima jamais fica sabendo que aquela música é para ela
Por causa dela, não ganha nada com isso, quem ganha é o lírico burguês,
Esse que eu quero que se cale de uma vez por todas)
Estou farto do lirismo do que é falso e descabido, do lirismo do mundo hodierno
De resto não é lirismo
É mimimi de quem descobriu que falar bobagem também dá dinheiro e fama
É quadro de referência de futilidade de quem acha que sente as coisas
Eu quero o lirismo bruto do desespero existencial da modernidade
Dos surtos psicóticos que redundam em internação
Das mães desfilhadas em desastres urbanos

O lirismo pungente dos amores que enlouquecem até os mais centrados.

CALOR

Poema

O calor não me deixa dormir à noite
Isso me irrita profundamente
Depois meus sentidos me matam
O dia lindo lá fora me calcina com sua luz
O simples toque me causa dor imensa
O ruflar de asas de uma borboleta me deixa surdo

O fato é que preciso
Apesar da insônia noturna
Apesar do calor
Levantar-me e ter com o dia

Não há armadura forte o suficiente
Não há escudo contra os golpes
Não há vida após a insônia
Há o arremedo, o arrastar, a rotura
O desgaste, os olhos pegando fogo

O calor não me deixa dormir à noite
Mas me mata de sono de dia
Coze-me os músculos para que não se contraiam
Mata-me de cansaço para que eu esmoreça
O simples fato de ter de atravessar uma rua
É um sacrifício, mas preciso andar um quilômetro todo dia

O calor me derrete os tarsos
Metatarsos e falanges dos pés
Mas eu preciso andar
Ainda que com o toco de pernas que me restam
Ainda que com o que eu puder arrastar

O calor não me deixa menos sujeito
Não me deixa menos humano
Não suspende minhas responsabilidades
Não me torna inimputável

Não, apenas me mortifica