sábado, 25 de outubro de 2014

QUINTALESCO

Para mim, o quintal perfeito, ideal, seria aquele em que se coubesse um enorme, magnífico, africano, vibrante e frondoso flamboyant. O quintal perfeito teria lugar para minhas cachorrinhas correrem, haveria terra fofa para meus gatinhos fazerem suas necessidades fisiológicas sem eu ter que limpá-las. Um lugar para eu estar. Nada de verduras, horta, nada que o sol queime, nada que a chuva estrague ou que eu tenha que cuidar. Eu quero muitas flores. O quintal perfeito, para mim, seria aquele em que eu pudesse plantar um litro de sementes de girassol e pudesse colher uma braçada dessas flores magníficas todo dia, o quintal perfeito seria aquele em que eu pudesse ter um pé de cada fruta da minha infância: laranjas, tangerinas, mangas, jambo, amora, pitanga, abacate, tamarindo. O quintal perfeito seria aquele em que eu pudesse existir nele um pouquinho todo dia, que me fizesse ouvir o desespero das cigarras antes das chuvas, que me fizesse ter de salvar um sapo de vez em quando, que me deixasse ter, caso eu desistisse das flores, algumas galinhas. Para mim, o quintal perfeito seria aquele microcosmo quase rural mas exatamente urbano, de um lote que atravessasse a quadra, que tivesse um portão para a outra rua, a rua dos fundos, que me proporcionasse mais de uma opção para entrar na casa. Eu prefiro um quintal mais baixo do que o nível da rua, para ter a impressão real de descer para ele, sempre. Eu acho que um quintal perfeito tem de ter pés de limão e pimentas. É triste ter um quintal em casa e ter de comprar no supermercado ou frutaria, limão e pimenta. Para mim, o quintal perfeito é aquele em que eu pudesse sumir para o fundo dele e ficar lá a tarde inteira, sem saber que eu poderia estar dentro de mim, mexendo nas minhas plantas internas, olhando meus bichos mentais, colhendo minhas flores e frutas do imaginário.

POLIXICAMENTE CORRETO

Eu levo o meu lixo comigo
Dentro da minha mente
Dentro da minha boca
Dentro do meu coração
Dentro da minha vida
Dentro da minha agenda
Dentro dos meus livros prediletos
Dentro das revistas que leio
Dentro das minhas gavetas
Dentro das minhas fotos
Dentro da minha alma
Dentro do tutano dos meus ossos
Dentro do código de meu DNA
Dentro dos meus olhos tortos
Dentro do meu telefone celular
Dentro dos meus cadernos rabiscados
Dentro das dobras da barra da minha calça
Dentro dos meus bolsos
Dentro da minha carteira
Dentro do meu tuíter
Dentro do meu feicebuque

Até encontrar uma lixeira

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SEM TÍTULO

A vontade foi arrancar-lhe
A verdade pela garganta,
Enfiando-lhe os meus dedos
Puxando-a direto de suas pregas vocais
Para que ela não se escondesse entre seus dentes sujos.

Eu queria que dissesse a verdade,
Sob tortura mesmo, já que perguntar não adianta.
Queria que me dissesse o quanto me odeia,
Mas você continua a dizer as coisas do modo como sempre diz:
Mentindo.

A vontade foi lhe socar o estômago
Até que vomitasse o que tinha a dizer
Chutar-lhe a barriga até que, junto com o sangue
Aquele que você fez brotar em mim
Com suas mentiras.

A vontade foi extirpar-lhe uma a uma
Suas unhas cheias da merda que sai da sua bunda
Arrancá-las e fazê-lo comer, uma a uma,
Pedaço a pedaço até que se sufocasse e morresse,
Enfim.

A vontade foi lavar-lhe a cara suja
Com soda cáustica.
Essa cara suja das bundas azedas,
Que você passa os dias e as noites lambendo
Pensando que alguém um dia vai se lembrar
Que tenha, de alguma forma,
Peidado-lhe na cara, fazendo-lhe o favor
De deixar-lhe cheirar as tripas.

A vontade foi arrancar seus cabelos,
Quebrar-lhe os dedos
Emudecer-lhe cortando a sua língua
Para não ouvir mais a sua fala nojenta,
Bajulando gente que não gosta de você,
Que não lhe respeita de verdade.

Todo o mal que lhe desejo ainda parece ser pouco,
Pouco para a sua sede de humilhações,
Para o quanto você é capaz de se abaixar
Por tão pouco,
Por atenção de gente infinitamente mais baixa que você,
Por companhia para beber a bebida que você vai deixar fiado,
Por passar o dia inteiro se embebedando,
Principalmente de lixo que vem das conversas,
Fofocas alheias,
Da sujeira das ruas,
Do dióxido de carbono dos carros a passar,
Das maledicências,
Das quais você também é vítima, mas acha que não é,
Por estar no grupo daqueles que falam, em pé entre eles
Sempre com esse sorriso forçado pelo álcool
Sorriso fácil, vazio
Insignificante.

A vontade é lhe enfiar uma garrafa abaixo,
Quebrada,
Cacos, tampa de metal,
Rótulo de papel,
O copo seboso que anda entre seus dedos,
O cheiro de roupa suja que você exala
O bafo azedo desse mijo que você ingere
Comprado com o nome de cerveja.

A vontade é acordar uma hora dessas com a notícia de sua morte.
Mas eu sei que seu corpo é fechado.
Bala, faca, língua, nada entra nele,
Para falar a verdade, você tem tentado todo dia se matar aos poucos,
Mas a saúde parece ter preguiça de ir de seu corpo.
Uma coisa aqui, outra ali, e você vem mais forte do que antes.

Como me livrar de você?
O que eu posso fazer para me livrar de você?
Eu gostaria tanto de dizer que eu te amo, pelo menos,
Mas não amo. E nem você me ama.
Mas amor não é solúvel em álcool, já sabemos disso,
Não se engarrafa,
Não se vende gelado.
O que eu posso oferecer?

A sua sorte é o fato de eu ser covarde,
Enraizado, endividado,
Dependente.
Se não fosse isso,

Fugiria daqui sem lhe dar um mínimo de satisfação.

AIS

Quando penso nos dias em que vivo,
O quanto falta para os meus momentos finais,
Mal eu fico, de meus pensamentos cativo,
A contar os dias, horas minutos de meus ais.

Não sei o quanto ainda estarei nesse mundo,
Pouco me importa o quanto ainda falta viver,
Pouco me importa se estou são ou moribundo,
Não sei o quando ainda me resta sofrer.

Como num romântico e vazio poema,
Lamento triste o tédio do viver meus ais,
Como se eu vivesse um real dilema,
Como se eu sofresse dores mortais

Finjo a desgraça que seria mui bela
Aos olhos de quem olhar essas letras vazias,
A minha vida é tediosa, mas não é aquela
Que eu desejo, restam-me as minhas azias.

De sorte que canto o vazio da vida
Boba, fútil, oca, estéril e estranha
Vazio de tédio, da enfadonha lida,
Cheia de ais, uis, frescuras e manha.

A PORTA

A porta bate
E com ela se fecham
As bocas
As pálpebras
As conversas em aberto
A última fresta de luz
Que ainda havia tristeza adentro
Fecham-se meus dentes
Encaixando-se uns aos outros
Desgastando seu ebúrneo esmalte
Fecham-se meu ouvidos
Agora surdos do bater da porta
Fecham-se os zíperes
Os botões das calças
As tampas dos potes de creme
Do tubo de pasta de dentes
Fecha-se o espelhinho de passar batom
Fecham-se as mãos postas em reza
Os punhos de raiva
Fecha-se a cabeça para o futuro
A porta bate
E ninguém está do outro lado para abri-la
Não há maçaneta do lado de cá
Tudo se fecha quando a porta bate
Os botões de flores regridem-se
A glote se fecha em edema
As narinas se entopem
Os poros se fecham secando a pele
Tudo se fecha

Quando a porta bate

DO QUE EU NÃO GOSTO

(Minha eterna paródia de Anderson Alcântara, meu poeta e amigo)



Azia, arrotar choco, pelos de gato, pelos de cachorro, penas, poeiras, pós, pólens, pitadas de sal, sionismo, azedume, ereção matinal, bolsa de valores, reformas ortográficas, corretores automáticos de texto, marcas de batom em espelhos, quaisquer marcas de batom, vento frio, reumatismo, sensibilidade dentária, morte súbita, morte anunciada, morrer aos poucos, estado de sítio, sítio, charneca, cupinzeiro, portador de má notícia, ponte levadiça, tsunami, ameaça frontal, carne de pescoço, jeitinho brasileiro, meio-termo, meia-bomba, pé-de-guerra, pé-de-moleque, pão integral, arroz de festa, festa, boteco, botequim, bodega, viagem, atrasos, livros de autoajuda, carro sem puta-que-pariu, bucho de vaca, leite de cabra, filé de pescoço, multa de trânsito, porte de arma, marca de chupada, chupada que marca, livros emprestados, meias relaxadas, parques de diversão, circo, palhaço, zoológico, biscoito de queijo, risco Brasil, cuecas, listras horizontais, listras verticais, camisas listradas, peixe elétrico, porta de metal, pano de bunda, lodo, fuligem, piso antiderrapante, porteira, tatuagem de coração, meias coloridas, manchas de pele, pneus carecas, cabelo demais, cabelo de menos, cera depilatória, depilação, saídas de emergência, esporte de contato, indiscrição, excesso de discrição, problemas de lateralidade, gouinage, dar perdão à má palavra, a cada um minuto quatro coisas vendem, dez paçoquinhas só paga um real, um por cinco e três por dez, dar bom dia, receber bom dia, planejar, não planejar, receber presentes de aniversário, aniversário, festas de aniversário, cinzas de queimadas, camisinhas de vênus, refluxo gastroesofágico, operação pente-fino, açúcar demais, açúcar de menos, carne de caça, moral judaico-cristã ocidental, aparelho ideológico de estado, perturbação mental, poder moderador, funcionário fantasma, broxada, falta de libido, crime de leso-patriotismo, patriotismo, movimento uniformemente variado, postura indesejada, mel, mancha de sabão em pó, refrigerante de limão, pelo na orelha, psiquiatra, psiquiatria, peruca masculina, móvel que não acompanha o canto, cantada de mulher, pedir beijo, implorar por beijo, ficar sozinho em casa, ficar com a casa cheia de gente, dormir pouco, dormir muito, dor de cabeça, campanha eleitoral, cabo eleitoral, candidato a síndico, censura ao peito feminino, atraso de entrega pelos correios, sorvete de cupuaçu, cupuaçu, vírus de computador, período de espera, prazo de carência, carência, bônus de celular, memorial de aprendizagem.

NÃO-ALCOÓLICO

Não uso colarinho branco
Talvez por isso eu não seja
Tão atraente para você
Não sou gelada
Nem alegro a sua tarde
Se você me consumir em excesso
Provavelmente não ficará
Tonto
Alegre
Soltando pequenos arrotos de gás carbônico
Não
Não sou nada disso
Não sou alcoólico
Mas se o seu gosto é por coisas que lhe destroem
Eu até que sirvo
Apesar de não ter o espírito de Dionisos em mim
Nem por isso deixo de ser danoso
Entorpecente
Perigoso se consumido em excesso
Não me leia, ouça, ou não me coma
Antes de dirigir
O Ministério da Saúde
Adverte
Consumir-me em excesso pode trazer risco à vida
Risco de morte
Risco na pintura da lataria de seu carro
Risco nas lentes de seus óculos
Risco de faca na pele
Risco de ficar cego ou surdo por bordoada
Não tenho antídoto
O tratamento é sintomático
Provavelmente lhe darão soro
Anti-histamínico
E esperar que você se desempapuce de meu veneno
De minha chatice
Sinceramente
Espero que morra de overdose

De mim.

TOCA

A parte que te toca
Eu já amputei
Não me toques mais
Nem me obrigues a tocar-te
Para que eu tenha que me cortar mais ainda

A parte que te toca
Eu já extirpei
Eu não tenho mais
Está no lixo hospitalar
Junto com tudo o que eu já mandei arrancar de mim

A parte que me toca
Eu já me toquei
Já entendi
Já estou tentando te esquecer de vez
Antes que eu tenha que amputar mais

Mais do que as unhas que amputo com os dentes

A cada vez que penso em ti.

AMARGO

Daí eu me virei e fui embora,
E não mais falei consigo até hoje,
Isso já faz dez anos...
Como eu quero que isso mude de uma hora a outra, assim, sem mais nem menos?

Não dá.
Rancor é um destilado
De ervas amargas,
Mas é doce.

Não saberia mais
Viver sem esse travo na língua,
Sem esse ressentimento,
Sem esse cancro na vesícula.

Eu amo,
Adoro, até,
Odiar você.
Faz todo o sentido do mundo as coisas continuarem exatamente como e onde estão.

Eu lhe odeio.
De morte.
Até o tutano de meus ossos.
Gargalharia se visse você morrendo.

Ou não, ou lhe salvaria,
Carregar-lhe-ia nos meus braços,
A procurar o melhor dos médicos,
Enquanto não chegássemos à emergência
Que deveria salvar a sua vida,
Manter-lhe-ia vivo
Com a força vital de meus beijos sobre os seus lábios em quase morte.

Mas faria isso apenas para que viva.
Para amanhã meu ódio continuar.
Para que não cesse esse sabor do que eu sinto por você,
Esse jiló, essa gueiroba, esse catolé, essa chicória, esse almeirão
Que é seu nome nos meus lábios,
Que é esse ódio tão forte que eu sinto,

Sem o qual talvez eu é que não saiba como viver.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

POÉTICA

(Livre paródia de Manuel Bandeira)

Estou farto do lirismo sem noção da década de 2010
Do lirismo dos moços de barba por fazer
Das moças com roupas engraçadas
Dos corpos cobertos e das palavras bonitinhas
Da poesia das melhores bandas das cidades, das microdivas com nomes de pássaro
Dos mestiços, suicidas, pesticidas, sociopatas
Estou farto do lirismo das cantoras que existem há quase trinta anos
Dos compositores de quando eu era criança
Que cantam as dores dos sofridos da Ditadura sem senti-las
Estou farto do lirismo que não quer ser burguês
Mas suas palavras envolvem-se num torvelinho de não dizeres burgueses
Abaixo os cantores que cantam um amor moderninho mas trovadoresco tanto quanto
Aquele de uma cantiga medieval
Fora com os cantores que cantam o mundo e suas desigualdades
Fora do mundo e de suas desigualdades
Que se vá o cantor-burguês
Sua lírica pseudo-reacionária comunicada diariamente em seu smartphone
Que sumam suas afrodescendentes e brancas de olhares luzidios
E de agudos suaves a cantar os questionamentos
De almas presas em perfis de redes sociais
Estou farto do lirismo
Que quer ressuscitar o amor que morreu
A fé que morreu
O homem que morreu
A vítima social que morreu, a despeito da música que fizeram para ela
(Diga-se de passagem que a vítima jamais fica sabendo que aquela música é para ela
Por causa dela, não ganha nada com isso, quem ganha é o lírico burguês,
Esse que eu quero que se cale de uma vez por todas)
Estou farto do lirismo do que é falso e descabido, do lirismo do mundo hodierno
De resto não é lirismo
É mimimi de quem descobriu que falar bobagem também dá dinheiro e fama
É quadro de referência de futilidade de quem acha que sente as coisas
Eu quero o lirismo bruto do desespero existencial da modernidade
Dos surtos psicóticos que redundam em internação
Das mães desfilhadas em desastres urbanos

O lirismo pungente dos amores que enlouquecem até os mais centrados.

CALOR

Poema

O calor não me deixa dormir à noite
Isso me irrita profundamente
Depois meus sentidos me matam
O dia lindo lá fora me calcina com sua luz
O simples toque me causa dor imensa
O ruflar de asas de uma borboleta me deixa surdo

O fato é que preciso
Apesar da insônia noturna
Apesar do calor
Levantar-me e ter com o dia

Não há armadura forte o suficiente
Não há escudo contra os golpes
Não há vida após a insônia
Há o arremedo, o arrastar, a rotura
O desgaste, os olhos pegando fogo

O calor não me deixa dormir à noite
Mas me mata de sono de dia
Coze-me os músculos para que não se contraiam
Mata-me de cansaço para que eu esmoreça
O simples fato de ter de atravessar uma rua
É um sacrifício, mas preciso andar um quilômetro todo dia

O calor me derrete os tarsos
Metatarsos e falanges dos pés
Mas eu preciso andar
Ainda que com o toco de pernas que me restam
Ainda que com o que eu puder arrastar

O calor não me deixa menos sujeito
Não me deixa menos humano
Não suspende minhas responsabilidades
Não me torna inimputável

Não, apenas me mortifica