quarta-feira, 29 de julho de 2015

GOIANÉSIA


Eu me lembro do nosso primeiro encontro, eu me entendendo por gente
Havia um supermercado, havia minha tia trabalhando nele, havia Toblerone
Havia um córrego, uma subida inacreditável na Avenida Brasil
Havia a Pedage de meus avós mais pobres ainda
(Porque os outros eram só mais pobres)
A venda
A paineira
Daí uma estrada de Terra, a casa onde morava
E a casa de meus avós mais pobres
E a gente lá
Lembro-me de um dia de chuva
De passear no jeep do Tio Manoel
Lembro-me, depois de andar pela cidade
De entendê-la como se entende um plano cartesiano
De andar nas suas avenidas com nome de Estados, como quem descobre valores de y em função de x
De decorar itinerários, mudá-los, obcecar-me por eles e sentir-me bem só de passar por eles
Ou de evitá-los para sempre
Eu me lembro quando resolvemos nos descombinar
Deixamos de ser habitante e habitação
Deixamos de ser um do outro
Deixei de ser seu, deixou se ser minha
Arranquei-me de si
Não deixei nem uma raiz sequer
Nove meses (o tempo de gestar a compreensão das coisas) voltei
As ruas já não eram mais as mesmas
Nunca mais
Nunca mais foi a mesma
Perdi-me completamente de si, civitas
Não me acho em si nunca mais
Todas as vezes em que eu volto, fico dentro de casa
A estranhar a terra que me é mais habitual e comum do que qualquer outra
Mas que é estranhamente nova
Ainda que conserve suas belezas
Suas ruas retilíneas e largas
Suas suaves colinas
Sua planta cortada pelos seus córregos
Sua célere descida na bicicleta, sua subida a empurrá-la, sem coragem
Seu fundo de vale, suas casas grandes, frias, de cimento vermelho queimado
Suas montanhas ali, ao lado, altas, mais de mil metros acima do nível do mar
Suas tardes ventosas, a empurrar nossas bicicletas para trás
Suas torres eclesiais concorrentes, seu único prédio, seu junho friorento
Seu calor equatorial em janeiro
Desértico em agosto
Fogo no mato
Fogo na serra
Fogo nos quintais
O morro da Ema, primordial, arqueozoico
(Ainda o imagino levantando do solo e correndo em largas pernas atrás do sol
Levantando seu pescoço e revelando seu bico de ave magistral americana)
Seus canaviais a nos chover folhas carboretadas o dia inteiro sobre o vale
O vale
A Princesa do Vale de águas verdes, contaminadas, depois limpas, depois sujas de novo
Mas sempre água
A joia do Vale do São Patrício, mesmo que esteja muito longe desse rio
(Nossas águas caem no Rio das Almas por sua jusante, o outro está à sua montante)
Suas árvores, seus quintais, lotes grandes, invadidos pouco a pouco
Pela necessidade da multiplicação dos lares
Goianésia das mangueiras fartas
Goianésia que corre o risco de ficar sem abelhas por causa do veneno que joga nas lavouras
Mas que mana leite e açúcar cristal
E cujo álcool pode incendiar o vale inteiro, correndo nos seus ribeirões, córregos, represas e lagoas
Goianésia do Ribeirão Anda Só a dar-lhe de beber sofrendo dores de extinção
Do Ribeirão das Laranjeiras e sua água turva
Das suas centenas de represas, pisoteadas por vacas, bois e bezerros
Goianésia, amarela de Brachiaria seca na época da estiagem
Saibro, terra, água, serra, rocha, morro, lama
Lodaçal
Ricaços, pobretões, histórias caladas, silenciadas de pobres que morrem por terra
Mineiros de Araguary pioneiros
Terra de gente que veio de fora
Pós-guerra
Bernardo Sayão e sua marcha noroeste
Terra adotada por Dona Fiíca e seu impronunciável nome Berchiolina
Terra de Zezinho, Joãzinho, Zica, Dilurdes, Aninha, Tonheco, Tataca, Mariinha, Bia, Joca 
E outros diminutivos
Terra diminuta
Povo diminuto
Povo pobre
Povo de raça
Povo insistente
Povo emergente
À sombra de sua meia dúzia de grandes
Terra sazonal
A olhar o horizonte e esperar pela benesse de mais uma safra
Terra
Calcárea
Pedra nos rins de seus filhos mais sensíveis
Terra dura
Quem é fraco morre
De câncer de seus venenos a chover sobre as folhas que trarão riquezas
De esquecimento de sua geração que ainda emigra
De dor por essa terra ser tão dura
Mesmo quando cortada pelas máquinas agrícolas americanas mais modernas
É terra
Solo
Necessita de correção
Tarefa da qual eu me abdiquei
Para sempre


terça-feira, 28 de julho de 2015

BRASILIA

BRASÍLIA

A catatonia e o estarrecimento me tomam toda vez que eu preciso pousar meus olhos sobre Brasília
De perto, sua organização, sua ordem se esvaem num halo branco de luz intensa,
E numa imensidão que sobrecarrega as minhas retinas,
Depois de pousar meus olhos sobre Brasília, posso ficar sem olhar pelo resto da minha vida
Brasília levou-me embora os meus olhos,
Mais um momento ali, levar-me-ia tudo,
Tragado pelo vórtice sensorial que Brasília representa


Minha alma quase foi roubada por Brasília
Quase se perde na profusão dos seus espaços excessivamente amplos
O maior e mais inacreditável desperdício da capital da República
É o espaço que Brasília ocupa
São seus ecos, seus vagos, suas grandes extensões de grama amarelada, seca pela estiagem
Suas árvores retorcidas separando
Duas pistas de uma enorme avenida sem cruzamentos, esquinas
Brasília atômica: o espaço vazio entre suas partes ocupadas é a razão de seu volume
Brasília exclusivista: pensada, criada para o automóvel,
Branca,
Acinzentada,
Laminada,
Refletindo o azul cerúleo da imensidade do Planalto Central,
Nos vidros de suas construções alienígenas,
Brasília pós, hiper, ultramoderna,
Acima de qualquer esforço estético de existência,
Brasília da terra vermelha exposta, dos trilheiros a cortar suas áreas verdes queimadas pelo Sol,
Atalhos pedestres numa cidade que não respeita quem tem pés para andar.




Brasília, ontem ainda pensei nas suas ruas, nas suas distâncias, no cheiro de mijo da sua rodoviária.
Na descortesia de seus habitantes
Na distância entre os corações candangos, brasilienses, nordestinos
Nas asas de Ísis, na Fênix a mirar o sol nascente.
Ainda ontem pensei que estava aí, preso na rede de seus espaços vazios,
Na nulidade de seus exageros,



Na impossibilidade de seus espaços imensos, de seus ecos surdos grandiloquentes.